domingo, 29 de novembro de 2020

Porque sou de esquerda?



Porque sou de esquerda?

Deixa eu te contar porque sou de esquerda.
Que fique bem claro que não quero interferir no teu voto, apenas que entendas a minha razão, pois nos últimos dias, tenho percebido que qualquer publicação que faço, sofro algumas instigações, contestações e ataques. Na eleição do Bolsonaro, perdi vários “amigos”, isso até que foi bom, pois refina um pouco o relacionamento que temos não é mesmo? Conheço praticamente todos os que sigo neste canal, sigo aqueles que fazem ou fizeram diferença para minha vida em algum momento dela, meus amigos, ou pessoas que encontrei e que causaram impressão positiva. Mas talvez muitos não me conheçam direito, e às vezes, atacam, por eu pensar diferente.

Deixa eu te contar então porque sou de esquerda. Não é porque li Marx de cima a baixo, ou porque sou favor de Stalin ou Trotsky, ou que queira morar em Cuba ou Venezuela, como muitos aqui me sugeriram. Tive a oportunidade de desenvolver um trabalho na Venezuela, e percebi que as pessoas lá são maravilhosas, acolhedoras, hospitaleiras, mas em fim, não é a questão aqui.

Minha história com a esquerda começou quando estava por fazer 16 anos, já faz um bom tempo, hoje tenho 47, meu avô o Nicolau Heinrich, o patriarca da família, descendente direto de imigrantes russos que fugiram da revolução comunista. Meu avô falava alemão, veio de um nicho conhecido como alemães do Volga, uma célula estrangeira que não era bem vista na revolução daquele país. Ele tinha um problema na perna, dificuldade para se locomover, o pé dele era virado para dentro, não lembro se o direito ou esquerdo, acho que um problema de degeneração, geralmente usava uma bengala de madeira super refinada. Mas o Nicolau nunca perdia a pose e a forma, quando chegava, ninguém ficava indiferente, ele fazia uma presença incrível, ele era sempre o centro das atenções. Meu avô era comerciante, tinha uma tabacaria na rua mais procurada do Centro de Porto Alegre, nunca deixou faltar nada em casa. Eu adorava ele, eu era o primeiro neto, mimado, qualquer problema que eu causava, e eram muitos, o Nicolau me abrigava e protegia. Uma vez eu consegui com minha Monareta mirim derrubar meu pai e meu irmão Márcio, que vinha no banco da carona da bicicleta no areão, nossa, eles esfolaram a pele inteira, viraram puro sangue, e onde fui buscar abrigo? Sim, no quarto do Nicolau, completamente protegido. Não quero julgar aqui meu avô pelo que ele foi ou fez, mas pelo o que ele foi pra mim. Meu avô pra mim, foi Top.

Se você leu até aqui, é por que tem alguma relação comigo não é mesmo, então a questão toda começa quando entrei no Júlio de Castilhos. Nossa, entrei por sorteio, e era difícil naquela época, foi uma felicidade imensa para mim, começar o próximo ano em uma escola pública de alto nível. Desci do ônibus Jardim Botânico, subi aquela lomba correndo e encontro meu avô, ele estava lá sentado em seu sofá, olhando para rua tomando seu drink, era algo vermelho com gelo, que ele sempre pedia para a Joana, minha querida avó, trazer mais. Chego feliz, e digo:
- Vô, consegui entrar para o Júlio de Castilhos!
Ele me olha meio atravessado, com aquelas bochechas vermelhas, não valorizou muito minha conquista. Termina de acender o charuto e diz:
- Lá que estudou o Brizola né? Isso é colégio de comunista. Abre teu olho.
O Nicolau era um desafeto do Brizola, na sua época de juventude, em algum momento eles andaram juntos e brigaram ao extremo, não sei até hoje o que ocorreu ao certo. O que meu avô dizia era lei, afinal qual avô dava 1 barão para comprar bolinhas de gudes?
- Sim vô, já me inscrevi, vou me especializar em técnico de laboratório, fica tranquilo.
Quando estava entrando em casa, dando afagos no cachorro, o vô pergunta:
- Tirou teu título né Serginho, tu vai votar em quem, já pensou nisso?
- Bah vô eu não sei ainda, estou pensando no Lula ou no Covas.
Este momento eu nunca vou esquecer na minha vida, meu pai entra quase no mesmo instante da pergunta, acho que já tinha tomado umas e outras. Estou parado na área, fazendo carinho no cachorro, ele escuta a pergunta e a resposta. Entra voando e diz, tu tirou o título para votar em comunista?
- Não, pai, eu não sei ainda.
Meu avô, se remexe no sofá, agora ele começa a montar o cachimbo, toca fogo naquele negócio, um cheiro muito bom do fumo achocolatado invade o ambiente, ele dá umas cinco tragadas e diz:
- Serginho, eu não quero ter um neto comunista, então é bom tu pensar bem em quem tu vai votar. Até porque Serginho, esses comunistas tomam dinheiro da gente. Tu já imaginou, a gente perdendo o que tem pra essa gente?
Meu querido pai, de forma mais direta, reforça e diz:
- Não tem espaço aqui para filho comunista, se tu quer votar no Lula não tem problema, pega tuas coisas e vai morar em outro lugar.
Com essa dupla porrada, isso que nem ia votar no Lula, estava muito inclinado no Covas, mas fiquei muito triste, baixei a cabeça, fiz mais um chamego no cachorro que parecia me entender melhor, quando estava entrando no corredor resolvo voltar e pergunto:
- Vô, voto em quem então?
- No Collor – responde os dois, prontamente.
Então, não só votei no Collor, como fiz campanha. Eu era um dos panfletistas que ficavam na Ipiranga com a Salvador França, torrando no sol, tinha 16 anos, distribuía em torno de 2 a 3 mil folhetos por dia, de carro em carro. Fiquei 2 semanas trabalhando para o Collor, e logicamente votei nele.

O final, todo mundo sabe, mas o meu final eu vou te contar agora. Meu avô, o Nicolau, ficou gravemente doente, meu pai, que estava doente pelo álcool, não conseguia tocar mais o negocia da família. Meu avô, soberano, decidiu, pelo bem da família vender a operação e guardar os recursos para gerir a família e a sua saúde já debilitada.
O Plano Collor entra e confisca todas as poupanças e aplicações acima de 50mil. Pode ter sido uma coincidência do destino, mas todo dinheiro da venda da loja do meu avô ficou preso, confiscado. Sempre tive uma vida boa, nunca faltou nada, mas neste momento, a vida virou e não temos mais renda.

Eu tinha 17 anos, estava muito puto da cara, não tinha dinheiro para passagem nem para ir para a escola que tanto ostentei. Estava em um dia terrível, desci por trás do ônibus, sem pagar, pois não tinha dinheiro, o cobrador apontou o dedo na minha cara, e disse que a próxima vai me pegar. Subi aquela lomba da Dona Inocência, só quem sobe sabe o que é, estou com minha pasta, estou com raiva, não tenho emprego, a família ficou sem recursos, agora parece que a partir do mês que vem pode ser sacado 5mil por conta. 5 mil não paga nossas despesas. Meu avô não está mais no sofá, estava na cama. Entro com uma imensa vontade de dizer pra ele: “e ai vô, tu disse pra não votar no Lula e foi o Collor que roubou o dinheiro da gente ne´? “ Nossa, fui com esse discurso pronto, e ainda bem, me agradeço até hoje por não ter dito nada disso. Entrei no quarto, o Nicolau estava já convalescido, ele olha pra mim, eu sento ao lado dele, o patriarca deixa escapar lágrimas que nunca tinha visto, abraço ele, digo que esta tudo bem. Neste momento nos conectamos.
Dias depois, eu acompanho meu avô em uma ambulância para o Cardiologia, no caminho ele pergunta se conseguimos ganhar do Santos. Eu disse que sim, que estava 3 x 0 para o Inter. Ele diz: “fudemos eles então” se referindo ao Grêmio, pois o resultado tiraria o Grêmio da Competição. Essa foi a última conversa com meu avô, detalhe, o Inter perdeu e o Grêmio se classificou. Eu menti, mas ganhei um sorriso e a última alegria dele.

Meu avô morreu naquele dia. Eu gostava dele. Nunca tinha participado de um velório, foi uma coisa nova pra mim. Quando meu avô partiu, minha cabeça mudou, em muitas coisas. O que pensava sobre religião, e principalmente na politica, isso me fortalece até hoje, eu prometi para ele, lá no seu caixão, que nunca, mas nunca mais eu voto em algum partido de centro ou direita na minha vida.
Então conheci tanta gente legal nessa vida, meu pai se foi com suas convicções, eu fico com as minhas, e são minhas, respeito a todos, inclusive meus melhores amigos, não vou citar nomes aqui, mas boa parte deles são de direita, outros de esquerda, outros de extrema direita, melhor nem falar, tenho também um novo amigo chimango de puro sangue que conseguimos travar ótimos debates, onde o respeito sempre prevalece. Então, a vida nada mais é do que um relacionamento pleno entre as diferenças.

Então, declarei aqui, de peito aberto meus motivos, se não sirvo para você, faz um favor ai, despluga a amizade. Blz.

Aliás, o Nicolau, que recebeu o nome em homenagem a Nicolau II, Último Kzar Russo, que foi morto junto com sua família pelos comunistas. Meu avô é o último da direita, de caução amarelo. Top demais!