A minha infância foi marcada
pela presença de pessoas extremamente diferentes, engraçadas, algumas pessoas
poderiam tranquilamente serem confundidas com personagens literários. O Seu Guilherme marcou a infância de toda a
gurizada do Botânico, e até os dias de hoje, seu nome sempre é citado em nossos
reencontros, principalmente porque as conversas sempre nos remetem à infância.
Lembro que naquela época, a rua onde morava não tinha calçamento e o esgoto
descia por um valo a céu aberto. Onde hoje é o Bourbon Ipiranga, antes era uma
enorme área, com vários laguinhos formados pelas chuvas onde passávamos muitas
vezes a tarde inteira caçando girinos. Nesta época a criatividade e a
sobrevivência andavam juntas. Fabricávamos nossa própria arma: o trabuco - um pedaço de bambu que servia de cano, e
bolinhas de sinamomo que eram prensadas. Um segundo pedaço de bambu mais fino
servia para impulsionar e dar a pressão. Funcionava como se fosse uma seringa.
A pressão arremessava a bolinha contra o alvo, que podia ser alcançado até 30
metros, e o alvo no caso, o Seu Manoel, farmacêutico e tio do Marcelo. Sempre
que ele subia a lomba, com sua maleta de couro, a gurizada já se mobilizava
para agir. Aqueles que não tinham o trabuco, atiravam pêra mesmo. A velha
pereira, que tanto abasteceu e alimentou a turma, continua ainda firme em meio
a paredes de concreto, ao lado do bar do Pedro. O Seu Manoel aplicava injeção
na gurizada. Mas não era uma injeção qualquer, era um kit de vidro, onde a
vítima presenciava angustiadamente e quase consumida pelo medo, toda aquela
cerimônia de montagem do equipamento. A agulha parecia ser mais grossa do que
as de hoje e não eram descartáveis. Não preciso falar mais nada do Seu Manoel,
pois não deixa muita saudade.
O Seu Guilherme esteve sempre presente, pois vestia a
gurizada. Era um judeu alto, muito magro, quase careca, com aproximadamente
cinquenta anos, usava óculos enormes e sapatos compridos. Estava sempre rindo,
sabia da vida de todo mundo. O Seu Guilherme não tinha carro. Andava com
sacolas enormes de roupas para vender de porta em porta. Pijamas, camisetinhas,
abrigos, cuecas que pareciam micro sacos de batatas. Todos vestiam as Roupas do
Seu Guilherme. Lembro dele entrando porta à dentro, abrindo sacolas e tentando
ajustar à peça ao corpo. Escolhidas as roupas, anotadas as encomendas, o
pagamento poderia ser feito em parcelas, anotadas na caderneta. Uma facilidade
que forçava sempre uma nova visita, tanto para cobrança como novas encomendas.
Assim Seu Guilherme trabalhou por anos até ter um concorrente: A Dona Flora.
Na Salvador França, palco de tantas descidas de carrinho
de lomba, a Dona Flora abriu uma lojinha de roupas. Era uma senhora com
sessenta anos, muito parecida com a Dona Benta, personagem de Monteiro Lobato.
Ela oferecia uma grande variedade de roupas e o pagamento era a perder de
vista. O Seu Guilherme foi perdendo
a clientela, as encomendas foram ficando escassas e logo não o vimos mais.
Saudades daquela época do Seu Guilherme. Época em que o
Natal era comemorado em várias casas, a turma ia de casa em casa filando peru e
doces, recebendo abraços e presentes dos vizinhos. A violência naquela época
existia apenas nas brincadeiras que às vezes passavam do limite, como aquelas
caixinhas de correio que iam pelos ares com os rojões que a Dona Edi vendia. Bons
tempos aqueles.